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Fonte: Nova Cana

Por Fausto Sá Teles* e Victor Gomes**

No final de abril, o preço médio do litro da gasolina comercializado nos postos brasileiros baixou dos R$ 4,00 pela primeira vez em mais de dois anos. A redução no preço do combustível na bomba resulta da queda fortíssima no preço internacional do petróleo, cuja principal explicação é, claro, a covid-19. A pandemia reduziu fortemente a demanda por combustíveis, forçando os preços para baixo. Porém, mal deu tempo de o consumidor usufruir dos novos preços e já há propostas para aumentar os tributos sobre a gasolina.

A pressão pelo aumento vem dos produtores do etanol. O setor sucroenergético, que tinha as melhores expectativas para 2020, com recorde de safra em 2019/20, parece ter encontrado uma tempestade perfeita. Viram a demanda pelo etanol despencar, ao tempo que o principal combustível concorrente ficou mais barato.

De acordo com estudo do Ibre/FGV, o setor de biocombustíveis é um dos segmentos da indústria mais afetados pela pandemia, junto com o próprio setor de petróleo. Ao que tudo indica, os representantes do setor sucroenergético acreditam que isso justificaria um socorro custeado pelos consumidores de combustível e demais brasileiros.

Reivindicam, assim, um aumento na Cide-combustíveis sobre a gasolina, acompanhado de uma isenção temporária de impostos federais (PIS/Cofins) sobre o etanol. Para completar, circula a possibilidade de imposição de uma taxa de importação de 15% sobre o derivado de petróleo.

O pleito divide posições no governo e entre agentes de mercado. Os ministérios setoriais ligados ao tema – da Agricultura, e de Minas e Energia – têm se manifestado favoravelmente às medidas. De outro lado, representantes da Petrobras, do Ministério da Economia e de associações de postos revendedores já deram declarações contrárias.

Do ponto de vista do consumidor, porém, este não parece um julgamento difícil. Enquanto o preço da gasolina subia, o repasse era quase que imediato. Como justificar o contrário, agora que houve redução?

Em primeiro lugar, a proposta do setor não ataca (nem poderia atacar) a origem do problema. A fase aguda da pandemia deve durar ainda pelo menos alguns meses, ou até que uma vacina efetiva seja disponibilizada. Para o petróleo, o cenário de referência da agência EIA, vinculada ao Departamento de Energia dos Estados Unidos, é de que o barril Brent não deve chegar a US$ 40,00 antes de 2021.

Diante desse quadro, parece mais adequado manter a estratégia atual do governo, de focar os esforços em ações horizontais, que permitam o enfrentamento da crise de forma isonômica por todos os setores da economia, em vez de empurrar o ônus de um grupo de agentes econômicos para outros. Afinal, após um socorro excepcional e injustificado ao setor de etanol, quantos outros se sentirão no direito de exigir um tratamento diferenciado?

Em segundo lugar, deve-se registrar que embora alguns defensores dessas medidas argumentem que não haveria impacto para o consumidor, isso não é verdade. O próprio objetivo da proposta, que é incrementar a demanda e o preço do etanol por meio de taxação (e perda de competitividade) do produto concorrente, contradiz o argumento. O preço final do combustível será maior aos consumidores, mesmo para aqueles que alternarão de gasolina para o etanol com o aumento de tributos.

Além disso, o aumento da Cide e do imposto sobre importações à gasolina significaria o agravamento de um quadro que já é injusto. No Brasil, os impostos respondem por mais de 50% do preço da gasolina. A parcela de tributos federais foi a que mais cresceu nos últimos cinco anos na composição de preço do combustível, passando de R$ 0,26 para R$ 0,68 por litro, entre 2014 e 2019.

Dentre as propostas, é particularmente preocupante o aumento do imposto sobre a importação da gasolina. A medida causaria uma assimetria no mercado, ao onerar os agentes que importam o combustível em detrimento de produtores locais, reduzindo a competição. Para piorar, foi apresentado na Câmara dos Deputados o PL n° 2.546/2020, que prevê a proibição da importação não só da gasolina, mas também do etanol e de outros combustíveis por até cinco meses.

Quanto à isenção do PIS/Cofins, por fim, embora possa beneficiar o consumidor com uma redução imediata no preço do etanol, daria causa a uma renúncia tributária de até R$ 1 bilhão em três meses, caso o volume de etanol consumido no período se aproxime das médias históricas.

Se mudarmos o foco para pensar em soluções para o mercado de combustíveis como um todo, em vez de cuidar de setores específicos, encontraremos outras alternativas, que também merecem a atenção do público. Em vez de aumentar pontualmente a Cide, o governo poderia finalmente fazer valer um dos objetivos principais de sua criação, e convertê-la em mecanismo para amortecer as flutuações no preço da gasolina.

Isso difere da reivindicação do setor de etanol, uma vez que demandaria a regulamentação de um gatilho a ser disparado automaticamente quando o preço ultrapassar certos limites, para cima ou para baixo. Esse sistema melhoraria a previsibilidade de preços aos consumidores, seria neutro do ponto de vista tributário (através de uma conta gráfica ou fundo de estabilização), e não teria efeitos de distorção de preços.

Não por acaso, esta foi uma das principais sugestões recebidas pela ANP na Tomada Pública de Contribuições (TPC) n° 1/2018. Quanto à redução de custos dos produtores almejada pela proposta de isenção do PIS/Cofins, uma discussão mais construtiva seria sobre quais os ajustes necessários para viabilizar a venda direta de etanol, sem que haja distorções no mercado nem prejuízo fiscal. Ou, ainda, sobre a adoção de ações para reduzir a complexidade tributária no mercado de combustíveis, diminuindo os riscos de fraudes, os custos das empresas e os preços aos consumidores.

A indústria do etanol é de extrema importância para o Brasil. Sua relevância no contexto do desenvolvimento sustentável e na geração de renda é inegável. Sua cadeia abarca atividades desenvolvidas por agentes econômicos de todos os portes, desde grandes multinacionais até pequenos agricultores.

No entanto, é preciso ter cautela na criação de estímulos setoriais quando falamos de uma indústria estabelecida, competitiva e que já conta com diversos incentivos e com políticas estruturantes. Essas externalidades positivas socioambientais associadas à indústria do etanol precisam ser levadas em conta nas escolhas públicas.

Mas é melhor que isso seja feito por meio de políticas permanentes, com correta metodologia de precificação das externalidades, capazes de acompanhar a dinâmica de mercado e que garantam previsibilidade para os agentes. E é para isso que foi criado o RenovaBio. Ainda que o novo cenário possa demandar ajustes de prazos e metas, esse é o momento de fortalecer e consolidar o programa. O oposto, que vai contra as boas práticas regulatórias, é insistir em práticas intervencionistas e no voluntarismo.

O Brasil precisa superar sua história de intervencionismo e compadrio, e se tornar uma verdadeira economia capitalista, em que o estímulo à concorrência e a confiança nas dinâmicas de mercado estão acima dos interesses de setores específicos, em benefício de toda a sociedade. O governo atual, em particular, eleito com o discurso de acabar com privilégios e com a equipe econômica comprometida com a abertura de mercado, com a eficiência e com a eliminação de distorções que prejudicam a concorrência, não deveria ceder à pressão de quem grita mais alto.

* Fausto Sá Teles é engenheiro e consultor em políticas públicas, com experiência em temas de infraestrutura, tecnologia e desenvolvimento sustentável. Também é analista legislativo da Câmara dos Deputados.

** Victor Gomes é economista e advogado, especialista em energia e sócio da Reis Gomes Advogados.

Textos opinativos não necessariamente traduzem a opinião do novaCana. A publicação visa estimular o debate e proporcionar uma variedade de pontos de vista para os leitores.

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