Além dos elétricos: o plano da Stellantis para superar a Tesla

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Para Antonio Filosa, da Stellantis, o etanol deve colocar o Brasil na vanguarda dos carros elétricos

Exame

Desde que as ações estrearam, em 18 de janeiro, a Stellantis tem sido uma das estrelas da indústria automotiva em bolsas globais, fazendo jus ao nome emprestado do latim: na Euronext Paris, a valorização beirava os 50% até o dia 11 de junho. Na bolsa de Nova York, a alta é de 43%. O valor de mercado de cerca de 65 bilhões de dólares do grupo resultante da união da Fiat Chrysler (FCA) com a Peugeot Citroën (PSA) a deixa à frente de novas montadoras elétricas, como as chinesas NIO e Xpeng, mas ainda atrás de rivais tradicionais, como Volkswagen, GM e Toyota, e muito distante da líder Tesla.

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Para o CEO da Stellantis para a América do Sul, o italiano Antonio Filosa, essa diferença vai diminuir à medida que os investidores reconhecerem a estratégia de aliar modelos elétricos que ganham escala com o apelo de marcas tradicionais, uma ampla rede de parceiros e a capacidade do time de engenharia. O papel que o Brasil vai ocupar na transformação da indústria automotiva também explicita uma estratégia além dos elétricos, dado o protagonismo pertinente, segundo ele, do etanol como matriz energética.

Para dimensionar o tamanho do mercado de elétricos no país, a Stellantis vai importar quatro modelos de sucesso no exterior até o fim do ano: o Fiat 500e, o Peugeot 208 e-GT, o Jeep Compass 4xe e um ainda não revelado da Citroën. Há desafios consideráveis no radar, como o câmbio desvalorizado e o ciclo inflacionário que não só encarece os carros importados e nacionais como reduz o poder de compra do consumidor brasileiro. Enquanto a economia não jogar a favor, o mercado doméstico vai crescer aquém de seu potencial, afirma Filosa. A seguir, trechos de sua entrevista à EXAME.

Como a Stellantis vai emergir da crise provocada pela pandemia?

É preciso dizer que a pandemia ainda não está superada. A América do Sul ainda está sujeita a lockdowns parciais ou totais, e isso significa muita volatilidade para o mercado automotivo, com restrições de acesso a alguns insumos, entre eles semicondutores provenientes da Ásia e matérias-primas locais. É difícil falar como a Stellantis sai da pandemia. O que temos de fazer é nos preparar para o ambiente de alta volatilidade.

Acumulamos experiência e know-how na digitalização de processos como o do engajamento do consumidor: test drive em casa, entrega do carro em casa e assim por diante. Fazemos um monitoramento contínuo sobre a falta de insumos. Não temos previsibilidade de quando essa situação vai se estabilizar. No primeiro trimestre, tivemos competência para que nossa produção ficasse marginalmente empatada. Mas a melhora só deve ser possível no fim do ano. Até lá, vamos continuar exercendo nossa capacidade de ser flexíveis com a operação.

Além da limitação de insumos, há um fenômeno global de encarecimento de matérias-primas como o aço. Como isso afeta a Stellantis na América do Sul?

Estamos enfrentando um ciclo inflacionário. Há uma escassez de insumos que pressiona a inflação e que se associa também ao nível de demanda de alguns materiais, que nunca havia crescido tanto. O ciclo inflacionário é evidente no aço, no cobre, no alumínio, nas resinas… E no Brasil a situação é pior porque junto há a desvalorização do real. Como toda matéria-prima é transacionada em dólares, quando isso é convertido em reais pagamos duas vezes. O que nós fazemos? Trabalhamos internamente para encontrar meios de sermos mais produtivos e competitivos no sentido de cortar custos.

A Stellantis tem essa competência enraizada, que é algo que vem dos dois grupos, a FCA e a PSA. E temos as sinergias técnicas e tecnológicas. Temos o compromisso, como todas as empresas privadas, de lucratividade e de rentabilidade com os acionistas. Em um ambiente tão inflacionário assim, tudo o que não pode ser recuperado com sinergias e com aumento da competitividade interna deve ser refletido no preço.

Qual é o espaço no mercado brasileiro para o aumento do preço dos carros?

É um espaço que tem a contrapartida de queda das vendas. É provável que o mercado não cresça o tanto que poderia crescer como efeito da inflação não somente automotiva, mas de tudo. O ciclo inflacionário vai se refletir em salários maiores, mas existe um intervalo de tempo entre o reajuste da renda familiar e o dos preços. Até que isso ocorra, o mercado automotivo não vai crescer com a potencialidade que tem. Vai crescer marginalmente.

Em reais, a inflação é algo claro em todos os mercados: o aluguel, a compra de imóveis, o supermercado, a compra de insumos para nossa indústria e os serviços automotivos. Em dólares, há um conflito inacreditável: nosso carro é muito mais barato do que o carro lá fora. Esse é o problema. Toda a nossa cadeia de valor é precificada em dólares. Começa nas commodities, no valor dos metais e das resinas. E nós vendemos nossos produtos em reais, em pesos argentinos, em pesos chilenos e assim por diante.

O senhor falou em cadeia de valor. Qual será o papel da engenharia brasileira na nova configuração global da Stellantis?

Atualmente 99% do trabalho de engenharia da Stellantis na América do Sul é realizado no Brasil. São cerca de 1.300 engenheiros e designers que trabalham em projetos locais e globais. Temos uma equipe robusta em Betim, Minas Gerais, que é responsável pelo desenvolvimento de hoje e do futuro das marcas Fiat e Jeep e agora também da Peugeot e da Citroën para a América Latina. Esses engenheiros prestam serviços para outras marcas.

Vou dar um exemplo: em Pernambuco, temos um núcleo de engenheiros de motores e outro de engenheiros de software que trabalham também para a Maserati, que criam produtos que serão montados e estarão presentes nos carros da marca. E pode acontecer para as demais marcas. O que isso quer dizer? Não existe mais um CEP para a engenharia automotiva. São plataformas globais e marcas globais, e a engenharia trabalha e presta serviços para todas as áreas que se referem ao mercado, aqui e lá fora. E as oportunidades agora se multiplicam.

O que o brasileiro pode esperar, de maneira realista, que vai chegar ao país do que há de mais inovador na indústria automotiva?

Vai chegar ao Brasil o que existe lá fora. Neste ano vamos importar modelos elétricos de Peugeot, Citroën, Fiat e Jeep que são sucesso em mercados lá fora. O câmbio neste momento tem um impacto muito forte no preço desses produtos, mas, para nós, será um teste muito interessante para entender até que ponto pode chegar, e com qual velocidade, a eletrificação no Brasil. E daí construiremos estratégias de médio e longo prazos. Acredito que a eletrificação vai chegar ao Brasil com uma velocidade até maior do que se espera. Mas o país também tem investimento forte em P&D [pesquisa & desenvolvimento] em etanol, e isso vai continuar.

Quando se analisa o ciclo inteiro, do plantio da cana-de-açúcar ao escapamento, o etanol neutraliza muito as emissões de dióxido de carbono. Isso significa que vamos continuar investindo no etanol e testando o mercado de eletrificados. E daí tomaremos as decisões de investimento. Acreditamos que o Brasil terá a coexistência por mais tempo do que outros mercados, seja pelo caráter ambiental, seja pela confiabilidade da infraestrutura de abastecimento.

Afinal, a falta de infraestrutura para recarregar carros elétricos no Brasil é mesmo uma barreira importante para o desenvolvimento do mercado?

Sim, é verdade. Mas não é rocket science [algo muito complexo de executar]. Em três ou quatro anos seria algo amplamente recuperável em termos de atraso. A estrutura da mobilidade eletrificada tem diferentes naturezas. Uma é a chamada wallbox, a supertomada para colocar na garagem de casa. Depois, há a estrutura semipública: são as vagas com estação de recarga nos estacionamentos de supermercados ou shoppings. O dono do carro fica lá 3 horas passeando ou fazendo compras e recarrega enquanto isso. Daí existe a infraestrutura pública, que precisa do investimento de algum governo; e a estrutura privada, que é o exemplo da Tesla e de outras marcas, que investem para colocar estações de recarga em pontos estratégicos. E todos esses tipos de investimentos para recarga podem ser entregues rapidamente. A supertomada doméstica as pessoas podem comprar.

Por exemplo, vamos importar o Jeep Compass elétrico: o consumidor poderá comprar também o wallbox por meio da Jeep e instalar em casa. A semipública eu já começo a ver presente em shoppings com uma, duas, cinco vagas para o plug-in. A estrutura pública falta mesmo no Brasil. E da privada eu tenho certeza de que nós, como montadora, vamos correr atrás quando virmos que há oportunidades de negócios com os elétricos.

O mercado de carros elétricos precisa necessariamente de incentivos do governo para crescer mais?

Sim. O mercado nasceu lá fora com governos associando ao tema das emissões o marco regulatório na direção da eletrificação. O marco regulatório brasileiro, que é muito bom, se chama Rota 2030. Até 2026, o foco é respeitar os novos padrões de emissões, e isso vai acontecer por meio do etanol. A próxima fase do Rota 2030, a partir de 2027, será mais restritiva: tenho certeza de que a eletrificação será necessária para atingir os objetivos de emissão. A cada fase haverá, junto com o etanol, a introdução de tecnologias de eletrificação. O marco regulatório vai definir a velocidade e a penetração.

O problema dos carros eletrificados ainda é a baixa competitividade. E daí alguns países associaram a venda a incentivos para o consumidor. E aqueles que adotaram incentivos mais audaciosos observam melhores resultados em termos de penetração. Mas são países sem etanol, é importante dizer.

Do ponto de vista da demanda, como o senhor avalia a aceitação e o interesse por carros elétricos no Brasil?

Tenho certeza de que uma parte do mercado que tem renda familiar mais alta vai querer cada vez mais carros eletrificados. Os que não contam com renda alta deverão esperar um pouco mais, até que aumente a competitividade da oferta eletrificada. E isso dependerá de escala, do mercado de commodities e do governo, caso decida oferecer a oportunidade de compra ao consumidor.

Além da eletrificação, o que está mais próximo de se concretizar do futuro do consumo automotivo para o consumidor?

O tema da mobilidade urbana por meio de assinatura [rent a car] ainda está incipiente, mas todos estão investindo nessa área. Os serviços de mobilidade representam uma demanda muito forte do brasileiro. O maior mercado do mundo para a Uber é São Paulo. Estamos ainda descobrindo o tamanho desse mercado, em que nós temos o Flua!, nosso serviço de carro por assinatura. Começamos como um projeto piloto nas grandes cidades e temos a perspectiva de crescer rapidamente. É um consumidor que quer acesso totalmente digital, sem dores de cabeça como pagar o IPVA ou gastar com manutenção. E quer a comodidade de ficar um ou dois anos com o carro e só ter uma conta mensal. É um consumidor mais jovem.

Algumas empresas de carros elétricos possuem maior valor de mercado do que grupos tradicionais, apesar de venderem muito menos. Como atrair o investidor?

Desde quando a Stellantis existe, os mercados financeiros estão premiando o novo grupo. Há altos e baixos no valor das ações diante da volatilidade global, mas a tendência é de crescimento no longo prazo. A Stellantis é uma das novas empresas automotivas que mais investem na eletrificação. Já temos muitos produtos elétricos disponíveis e novos estão por vir. Temos o investimento em eletrificação com nossa rede de parceiros, a tradição de nossas marcas e a capacidade de engenharia para desenvolver e produzir novos carros: tudo isso deve eliminar a diferença para outros grupos.

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