Por ICL e Estadão Blue Studio
Fraudes bilionárias e entrada de facções e milícias nesse mercado também impulsionam a concorrência desleal e desafiam a justiça fiscal
A violência urbana se consolidou como a principal preocupação dos brasileiros. Segundo uma pesquisa recente realizada pela consultoria Quaest, 29% dos 2 mil entrevistados apontam os índices de criminalidade como o maior problema enfrentado no País, se descolando de questões tradicionalmente relevantes, como as mazelas sociais (23%), os desafios econômicos do cotidiano (23%), as dificuldades do sistema de saúde (12%), os entraves na educação (7%) e até mesmo a corrupção (10%).
O isolamento da violência como principal foco de preocupação reflete uma sensação crescente de insegurança e vulnerabilidade no dia a dia da população, diante de crimes cada vez mais sofisticados. O avanço do crime organizado sobre a economia, inclusive, já impacta diretamente o dia a dia do brasileiro em seu aspecto mais cotidiano.
O que poucos percebem é a relação entre a violência urbana e o comportamento de empresas que optam por não cumprir suas obrigações tributárias — os chamados devedores contumazes, muitos na figura de distribuidoras e postos de gasolina que deliberadamente não pagam seus impostos buscando alguma vantagem competitiva em relação a outras companhias, ou uma renegociação futura.
Estudo recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) revela que, desde 2022, o crime organizado no Brasil faturou R$ 146 bilhões com o mercado de combustíveis, bebidas e cigarros, em contraste com os R$ 15 bilhões acumulados com o tráfico de cocaína no mesmo período.
“Devido às cifras bilionárias movimentadas pelo setor de combustíveis, observa-se uma crescente infiltração de organizações criminosas no ramo. A relação entre o crime organizado e esses sonegadores é direta e histórica. A novidade é que o devedor contumaz passou a integrar o conjunto de negócios de facções e milícias. Há territórios em que a gasolina só pode ser adquirida de postos com alguma ligação com facções. No fundo, é uma afronta ao estado de direito”, alerta Nívio Nascimento, diretor de Relações Internacionais do FBSP. “A prática aparentemente inocente do consumidor de buscar combustíveis mais baratos – muitas vezes adulterados – acaba fortalecendo o crime e tornando a vida de todos mais cara.”
Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), ressalta que postos de gasolina ligados a grandes sonegadores tornam-se importantes instrumentos para o crime organizado dissimular a origem de recursos ilícitos e financiar sua expansão. “Essa prática contribui diretamente para o fortalecimento do crime, pois compromete a transparência dos ganhos reais desses postos, que deixam de informar corretamente sua arrecadação ao Estado. Essa falta de controle facilita a lavagem de dinheiro pelas organizações criminosas”, complementa.
Competição desleal
Somente no setor de combustíveis, a ação dos devedores contumazes já acumulou um prejuízo estimado em R$ 200 bilhões aos cofres públicos até abril de 2025, com um salto de 20% nos últimos seis meses, de acordo com projeção do Instituto Combustível Legal (ICL).
Para Emerson Kapaz, presidente do ICL, existe todo um modelo de sonegação e concorrência desleal que tem o devedor contumaz como principal base.
O esquema tem como objetivo tornar empresas mais competitivas por meio da entrada de “sócios laranjas”, que injetam recursos provenientes do crime organizado para dar aparência de legalidade aos negócios. Paralelamente, esses grupos apostam no não recolhimento de impostos — sendo caracterizados como devedores contumazes.
Segundo ele, esses sonegadores conhecem profundamente as brechas da Justiça e se aproveitam delas para adiar indefinidamente o pagamento de suas obrigações tributárias.
“O impacto dessa atitude no setor de combustíveis é muito significativo. A arrecadação de impostos federais e estaduais representa quase 35% do valor do produto, o que transforma a sonegação em um diferencial competitivo para esses infratores. Além disso, o devedor contumaz frequentemente deixa de recolher os CBios (Créditos de Descarbonização) ou se vincula a fintechs falsas, desviando recursos para fora do sistema do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras)”, explica Kapaz.
Desse modo, a ausência de uma legislação específica que caracterize o devedor contumaz faz com que o setor de combustíveis seja visto pelo crime organizado como uma porta de entrada estratégica para potencializar a competição desleal. “Essa falta de regulamentação atrai organizações criminosas e grandes facções para o setor, já que facilita a abertura de empresas motivadas pela prática da sonegação de tributos e a obtenção de margens de lucro muito superiores. Cria-se um ambiente propício à concorrência desleal”, destaca o presidente do ICL.
Um caminho para o enfrentamento
O Congresso Nacional avança no debate sobre a identificação e o controle do devedor contumaz. O Projeto de Lei Complementar (PLP) 164/2022, atualmente em estágio avançado de tramitação no Legislativo, enquadra essa figura como o sonegador cuja dívida injustificada ultrapasse R$ 15 milhões, ou represente 30% do faturamento anual da empresa (acima de R$ 1 milhão). Entre as penalidades previstas estão a suspensão de benefícios fiscais, o impedimento de firmar convênios com o governo e até a possibilidade de liquidação extrajudicial da empresa. Para Kapaz, esta é a “bala de prata” que irá acabar com a ação do devedor contumaz.
O senador Efraim Filho (União-PB), uma das lideranças nos debates na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, destacou que, nos moldes da proposta, cerca de 1,2 mil empresas se enquadrariam como devedores contumazes, um grupo enxuto, mas responsável por um prejuízo de mais R$ 200 bilhões aos cofres públicos. Em outras palavras, não se trata de pequenos inadimplentes, mas de grandes fraudadores fiscais.
Para Nascimento, o que falta ao país é estabelecer uma inteligência financeira para o enfrentamento das atividades do crime organizado no setor. Ele pondera que o Brasil, assim como vários países, pecou em não estabelecer iniciativas coordenadas para o enfrentamento disso. “As nações da região estão muito atrasadas em termos de cooperação e compartilhamento de informações e governança nesse sentido”, conclui.